terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Acordo ortográfico

Todos me sabem contra o acordo ortográfico, mas mais cedo ou mais tarde, vou ter que me habituar a ler e a escrever como nunca aprendi. Tudo se aprende. Somos bichos de hábitos. Encontrei um texto de um jornalista que se vê curvado à evidência de ter que começar a usar as palavras segundo o novo acordo. O texto parece-me delicioso, e as palavras, escolhidas a dedo.
O que não faz um cê a mais.

Errado

Deixo-vos com o texto:

Um cê a mais

"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."

Manuel Halpern

Texto roubado daqui ^^ 


Há coisas fantásticas não há?

2 comentários:

Olhar infinito disse...

"Ainda há escritores fantásticos... quendo perdemos alguma coisa, antes íamos à procura dela, agora não. De fato o acordo "errográfico" vem até nós com a novidade que o que é supérfluo não tem lugar... Eles veem o que eu não vejo em fatos históricos "roubados" pelos "cangalheiros" que fazem coleção de o(b)jetos o(b)suletos. Que expulsem as letras mudas, mas que não calem as nossas vozes e nos digam a verdade...por quanto vão vender cada letra tirada? é com esse valor que vamos sair da crise !!!

Ismael Sousa disse...

é sem dúvida um grande texto, mas todos somos atores num ato em que ato os cordões ao sapato! a meu ver é um crime contra o que é só nosso! mas, como sempre, assistimos a crime como espetadores sem podermos agir!
abraço